Venho de uma família com mulheres fortes e independentes. Minhas duas avós tem diploma de graduação, ambos conseguidos depois da aposentadoria, que só veio depois de muito trabalho. Minha mãe se formou na faculdade comigo no colo, terminou o mestrado antes que eu completasse dez anos, e deixava meu pai se virando comigo quando precisava sair e ser maravilhosa em congressos por aí. Minha mãe e minhas avós me criaram pra ser forte e independente como elas, e suas vidas são ótimos símbolos de uma luta por igualdade e girl power, mas nenhuma delas, quando eu perguntei, me respondeu que era feminista.
Eu ainda lembro daquela época quando, na minha cabeça, a feminista era praticamente uma bruxa. Lembro de O Cravo e a Rosa, da Catarina e de suas amigas feministas, que eram loucas e chatas, e foram todas curadas por um grande amor. Eu ainda lembro de pensar que as feministas não me deixariam depilar as axilas, que iriam rir do meu sonho de casar com um homem vestida de noiva e que pra elas pra elas tudo era noooossa.
Mas eu lembro também de ficar incomodada com várias coisas, como o fato do meu avô nunca ajudar minha avó em casa ou quando uma amiga me disse que os garotos não gostavam de mim porque eu era inteligente e tinha muitas opiniões fortes, e garotos não gostam de meninas assim - logo, era pra eu parecer ser menos inteligente, dar menos opiniões, e ser mais fofinha também, se não for pedir demais. Outra vez eu ouvi que o suposto motivo do casamento dos pais de uma conhecida ter acabado era porque a mãe ganhava mais que o pai, e lares assim não funcionam direito (e a culpa, claro, era da mulher). Eu ouvia meninas falando que preferiam a amizade de meninos, porque meninas não são confiáveis e têm inveja umas das outras. Já conheci várias meninas que deixaram de usar alguma coisa porque o namorado "não deixava", e por isso não passavam esmalte escuro ou usavam batom vermelho. Quando cortei o cabelo curto pela primeira vez, aos 14 anos, ouvi de muitas pessoas que aquela era uma péssima ideia e que homens não gostam de meninas de cabelo curto - e até hoje no salão se eu mando cortar tudo tem alguém que vira e pergunta: mas seu namorado vai deixar?
Eu ouvia essas coisas por aí e ficava muito desconfortável, discordava de tudo, questionava tudo, mas não sabia o que isso significava. Porque eu achava que era obrigação do meu avô - e de todos os homens - cuidar da casa também. Porque eu não queria que um garoto gostasse de mim só se eu fosse menos inteligente, tivesse menos personalidade, ou fosse mais fofinha, coisa que eu não era. Porque o fato da mulher ganhar mais não era um pecado. Porque eu tinha amigas maravilhosas e não acreditava que elas me fariam mal em busca de vantagens. Porque eu xamais deixaria de pintar minhas unhas de determinada cor, de usar algum batom, ou de cortar meu cabelo porque meu suposto namorado não permitiria.
Então, no segundo ano do ensino médio, minha turma passou o ano todo trabalhando num projeto cujo tema era mulher. A gente desenvolvia várias atividades em sábados letivos e no fim do ano apresentava pro resto da escola, como numa feira de ciências. Foi em 2010, ano em que a Dilma foi eleita a primeira mulher presidente do Brasil, e numa dessas atividades nós fomos pra rua fazer algumas perguntas sobre igualdade de gênero. A última pergunta do questionário era: "você é feminista?" e nem preciso dizer que a maioria das pessoas disse que não, ainda que elas tivessem respondido sim pra todas as outras perguntas - sem saber que essa coleção de sim os colocava de acordo com a definição mais básica do que é ser feminista:
Mas olha só que coisa, eu também não tinha coragem de dizer que era feminista. Pelo menos não em voz alta.
Quem disse isso pra mim pela primeira vez foi minha professora de Sociologia do ensino médio. Ela estava orientando minha turma naquele projeto, e no fim tínhamos que entregar um relatório contando o que aprendemos ao longo do ano. Fiz esse relatório de um jeito bem passional, desabafando sobre todas as coisas que me desgraçavam a cabeça, compartilhando todos os absurdos que tinha ouvido das pessoas na rua, fazendo um inventário de todos os absurdos que eu tinha ouvido das pessoas na vida, de modo geral. Eu estava nervosa. Aí uns dias depois essa professora me chamou pra conversar, disse que tinha gostado muito do meu relatório, pediu pra usá-lo num artigo que ela estava escrevendo, e disse que ficava muito feliz por estar formando jovens feministas na sua sala de aula.
Uéééé...
Foi a primeira vez que eu ouvi aquela palavra, aquele palavrão, como algo positivo. Ela tinha me chamado de feminista, aquela professora maravilhosa, a mesma que um dia contou pra turma que nunca quis casar vestida de noiva, até que um dia ela quis, e se casou, vestida de noiva e tudo, e foi maravilhoso. Foi ela que começou a me mostrar que ser feminista era ter a chance de ser maravilhosa sem pedir desculpas, e poder ser que a gente quiser sem ter que se explicar pros outros, ou sentir vergonha, ou achar que você está fazendo algo errado por querer ser livre. Foi ali que eu percebi que feminismo era justamente uma luta pela liberdade.
O feminismo me mostrou também que, como eu já desconfiava, a gente ainda estava muito longe de ser livre.
Hoje é o Dia Internacional das Mulheres, uma data tão controversa que sinto que a cada ano tenho uma opinião diferente sobre ela. Em 2015, fico feliz porque me sinto mais mulher do que em qualquer outro ano. Estava certa nossa deusa, nossa louca, nossa intensamente citada feiticeira Simone de Beauvoir quando diz que a gente não nasce mulher, mas se torna mulher.
Me tornar mulher foi ter consciência das opressões que sofro, das lutas que tenho que abraçar, de perceber a mim mesma como minha só minha e não de quem quiser, e ter coragem de enfrentar esse nosso mundão, que é tão duro com a gente. Me tornar mulher foi ver que eu estava cheia de irmãs, aliadas maravilhosas, e nunca inimigas. Me tornar mulher foi perceber que esse processo nunca vai estar completo, todo dia é uma nova descoberta, e eu não sou perfeita e impecável, assim como não existem pessoas perfeitas e impecáveis, mas todo dia é um novo dia pra se aprender algo novo, desconstruir preconceitos e julgar menos as pessoas. Me tornar mulher foi aprender a ser mais gentil comigo mesma e com os outros, mas principalmente com as outras.
No entanto, em 2015, também fico triste porque mais uma vez vamos ganhar rosas de quem dali cinco minutos vai julgar a menina pela roupa que ela usa ou me chamar de mal comida porque não quero ser assediada nas ruas. Fico triste porque ontem duas mulheres apresentaram o maior telejornal do país - uma homenagem ao dia da mulher, mas isso só acontece no dia da mulher. A gente continua morrendo por ser mulher, dia sim, outro também, e não é uma flor ou um bombom que vai mudar isso. Então deixe suas rosas pros mortos e os discursos de delicadeza e elegância pra Barbie Malibu (?), porque a vibe aqui é faca na bota mesmo.
Venho de uma família com mulheres independentes e fortes, que me criaram para ser independente e forte, e queria muito que um dia essas mulheres - e todas as outras - se vejam e se sintam como as mulheres independentes e fortes que são e não tenham medo de serem feministas, porque uma mulher feminista é uma mulher que não tem medo de ser - e querer ser - livre.
Alguns links para você saber mais:
- FAQ Feminista, por Aline Valek;
- O que queremos nesse Dia da Mulher, por Mari Messias;
- Mulher de verdade, por Clara Averbuck;
- Dirty Dancing, mulheres rodadas e aborto, por Aline Valek;
- Mulheres famintas, Lélia Almeida;
- Não pode: ser feliz na Bahia, por Polly;
- Mulher demais, Clara Averbuck;
- Ninguém nasce pronto, Mari Messias;
- Flawed: uma feminista imperfeita, por Fabi Secches;
- Cadê a empatia e a sororidade?, por Bia Lombardi;
- Como o feminismo mudou minha vida, depoimento de várias mulheres pro Think Olga;
- Nem tudo são flores, editorial desse mês da Revista Pólen;
- Você pode ser você mesmo, por Dani Guedes;
- Respeita as mina! Hoje, amanhã e sempre!, por Carol Rocha;
- Ser mulher é ser incrível, sim, depoimentos de várias mulheres sobre o que é ser mulher pro HRN MNK;
- Vamos falar sobre as mulheres?, por Bianca;
- Sejamos todos feministas, Chimamanda Ngozi Adichie pro TED (legendado);
- Still figuring it out, Tavi Gevinson pro TED (infelizmente sem legenda);
- Não tira o batom vermelho, Jout Jout sobre relacionamentos abusivos;
- Sem nóia, sem caô, Jout Jout sobre meninas avant garde, donas dos próprios corpos;
Humildemente, três links da casa:
- Manifesto contra quem pensa que assédio é motivo pra dar risada;
- Ode a Meninas Malvadas;
- O que eles deveriam pensar;
Grupos do Facebook para pensar, discutir e ouvir minas maravilhosas: